Sopro entre mundos literários (parte III), de Jéssica Marques da Costa
PANDEMÔNIOS DA NECROPOLÍTICA
Haviam levado seus filhos enterrando-os, morreram contaminados pelo vírus, diziam, seus corpos não voltariam para aldeia. Enterrar um yanomami era inadmissível, eu sabia. Como são em todas as sociedades, a cultura de luto daqueles meus filhos, também tinham ritos muito particulares. Retirar os filhos de uma mãe era de uma violência tão profunda, e, não poder nem ter seus corpos para processar seus rituais... Depois de um tempo considerável sem esclarecimentos, disseram que os corpos poderiam contaminar a aldeia. Mas, para as mães, seus filhos estavam desaparecidos, pois, não houve qualquer aviso, nem consentimento, nem diálogo. Me agitei diante de mais aquela arbitrariedade. A política de morte os atingiu tão cedo que não tiveram chances, nem mesmo depois de mortos. Tudo isso me deu tanto a pensar.
Me questionei, será que a vida dos meus filhos de nada valem nesse mundo. Quais vidas valem proteger? Quais então são as que importam?
Esse vírus, mais do que resultado do desequilíbrio humano, desnudou desigualdades. Enquanto ouço alguns dizendo para todos ficarem em casa para que possam conter o vírus, tenho visto que alguns de meus filhos seguem sendo invadidos. Os conflitos territoriais se intensificam, e além de todos os problemas da invasão de garimpeiros, grileiros, mineradoras, madeireiros e mesmo os missionários há ainda o inimigo invisível que, por vezes, é levado por eles.
Parecem esquecer do meu povo, mas não esquecem da terra, pois em meio a tantos problemas, houve grupos da etnia Pataxó lá da região de Porto Seguro, tendo que lutar pra não ser despejado. Nos anos 90, uma mulher deu um dinheiro a um político e empresário conhecido, assinou um papel e agora na justiça disse ser a dona da terra, terra essa que, como disse a um repórter, não é pra indígena invasor, é pra avião. Na verdade, para ela, nem “índio” de verdade não são, onde já se viu índio ter carro.
Mas meus filhos sempre resistiram. Mulheres e homens de luta que fizeram e fazem frente a uma série de atrocidades. E por isso mesmo, teve sempre quem tentasse pôr um fim a essa resistência. Perdi muitos. Me lembrei do corajoso Manuel Juruna. Pai de Maria Altamira, Manu não a viu crescer. Foi assassinado ao defender seu povo e seus parentes do avanço dos madeireiros na região de Volta Grande em 1980. O matador de aluguel tentou fazer supor que o Juruna teria morrido afogado. Besteira! Yudjá não morre afogado, pensaram. Era guerreiro e foi morto em uma emboscada, assim como tantos outros e outras.
Vejo que resistem mais uma vez, enfrentando esse vírus que circula entre os meus, ameaça-os, e por vezes, acaba por levar a morte tantos parentes. E pra evitar ainda mais perdas, meus filhos estão se organizando, monitorando os casos de contaminação, informando os seus e os parentes fazendo tradução para várias línguas, fazendo barreiras sanitárias para limitar o acesso aos territórios. Tudo isso para evitar cada vez mais perdas, a vulnerabilidade entre meus filhos nada tem a ver com serem fracos, estão em situação vulnerável. É racismo estrutural, é racismo ambiental. Como meu filho Ailton Krenak disse sabiamente, sobre aquele sujeito que está no cargo de Presidente do país desse tempo, “Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos.”
Passei um tempo sem soprar pra lugar algum...
Final de Sopro entre mundos literários: reflexões sobre a situação e resistência dos povos indígenas em meio ao Brasil pandêmico.
Jéssica Marques da Costa é luzianiense, 24 anos, e tem morada na cidade de Jataí-GO onde faz graduação em História pela UFJ. Ama literatura e está em contínua procura de sua própria voz, escreve sempre que pode.
@ms_jessicamarques