"Olhares", de Ana Kaline Barbosa
Certa feita estava deslocando-me pela cidade quando, ao parar do carro onde estava como carona, em um cruzamento, olhei para o lado e uma cena chamou minha atenção. Uma senhora alimentava vários gatinhos na calçada de uma velha concessionária abandonada. Até aí tudo bem. Só seu gesto de caridade já seria digno de admiração. Mas foi então que um pensamento quase “meteórico” me fez viajar entre certezas e indagações de meu “fantástico mundo de Bobby”.
Aquela senhora, na verdade, estava praticando bem mais que um gesto de caridade, ela estava dando àqueles gatos uma grande dose de generosidade. Pois, para ela, o alimentar apenas não era suficiente. Estava preocupada em colocar um potinho para cada um (e eram muitos), todos organizados e limpos, além de pôr água fresca e gelada (dava pra perceber pelo aspecto da garrafa plástica que estava apoiada no chão). E a julgar pela intimidade dos felinos com ela, esse gesto já é feito há muito tempo e continuará por várias outras voltas ao sol.
Pode parecer bobagem sair por aí observando as pessoas na cidade, já que estamos todos sempre muito ocupados e atrasados, mas é assim que colho estórias, histórias e ensinamentos, não só para meus textos, mas para minha vida. Enquanto observo e pratico um pouco de empatia, recebo doses cavalares de exemplos dignos de serem admirados e seguidos. E essas doses “cavalares”, meus amigos, que podem remeter a força e robustez dos cavalos, na verdade, me remetem à doçura e ao comprometimento desses seres, me remetem às personagens da infância, como o senso de justiça e fidelidade do Cavalo de fogo ou as cores “açucaradas” dos unicórnios nas colinas sempre verdes dos contos de fadas.
Tolice? Bem... Para alguns a resposta será sim, mas para mim, que vivo sempre no limiar entre a razão e a imaginação que trago de minha infância, não. São esses momentos de “olhar infantil” que não me deixam perder a nitidez sem “pré-conceitos” de um olhar de criança. São esses momentos que me permitem olhar as pessoas com o amor necessário para ver seus interiores e admirar suas pequenas, porém espetaculares, atitudes diárias.
Para tomarmos posse de nós mesmos é necessário que tomemos posse de nossos olhares e nossos pensamentos. Somos sujeitos coletivos e não podemos evoluir sem ter a mínima “gentileza”, que seja, para “darmos a mão a alguém” e ajudar a levantá-lo. O Divino que tanto buscamos não está em vales distantes ou buracos negros inacessíveis, está dentro de nós mesmos e em nossa capacidade de vê-lo no interior de cada um.
Cada ser é parte do Divino. Só precisamos nos permitir reconhecê-lo, usar nossos valores e poderes latentes para segui-lo e praticar atitudes nobres que nos tornem viventes assíduos da “infinitude” de nosso próprio ser.
Às vezes só precisamos de uma simples mudança de olhar. De uma simples parada em um carro. De um simples “tropeçar nas pedras” por estar admirando e babando a beleza do céu. Às vezes só precisamos do simples para vislumbrar o extraordinário. Só precisamos “reparar” mais nas pessoas, como ensinava meu avô. Só precisamos parar de querer “crescer” nossa criança interior quando, na verdade, é ela que não nos permite endurecer aos moldes de um mundo, muitas vezes, cruel. Só precisamos parar, por um momento, de reclamar dos problemas (que sei que são muitos) e enxergar a centelha linda de vida que somos na imensidão do Caos.
A vida nos testa, muitas vezes de forma dura e, aos nossos olhos desavisados, muitas vezes sem motivo. Mas, acredite, se estamos passando por espinhos agora, é porque precisamos deles para chegarmos até às flores depois. O universo é sábio e justo, mas não “pega pelo braço e dá uma pisa”, como diria minha mãe. Ele dá exemplos, dores, alegrias, convicções e incertezas para que possamos, usando de nosso livre arbítrio, trilhar nosso próprio caminho. Colhendo os frutos (às vezes doces, às vezes amargos) de nossas próprias escolhas.
O universo não se “vinga”. Ele apenas responde, de forma corretiva, às nossas próprias ações.
Ana Kaline da Silva Barbosa é piauiense, Bacharel em Direito, filósofa, psicanalista em formação, especialista em Ciências Forenses – Pericia Criminal, especialista em Docência do Ensino Superior, escritora, palestrante e apaixonada pela literatura e pela escrita.