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  • Foto do escritorMargem

Ninho de ratos, por Isabel

Deitada sozinha no colchão de casal que estava no chão do barracão, Elisa tentava adormecer, mas permanecia desperta. Não conseguia um antídoto para a insônia que a assolava. Ela agarrou-se às cobertas, tentou desconcentrar-se, mas não conseguia esquecer: mudaria de casa no dia seguinte.


Tinha gastado os últimos dinheiros da reserva com o aluguel daquele mês, por isso mal tinha sobrado para comprar a comida e a cerveja. Ainda, deveria pagar a assinatura do serviço de streaming que dividia com a melhor amiga, Mônica, e com a namorada, Bárbara.


Não via Mônica pessoalmente há mais de um ano, pois a amiga tinha voltado para o interior do estado. Desde o início da pandemia de coronavírus, não havia motivos para que Mônica se mantivesse na capital mineira a altos custos financeiros. Elisa sabia que a amiga provavelmente nunca mais voltaria para Belo Horizonte, já que Mônica estava prestes a se formar e grávida de dois meses. Estando as duas amigas, naquele momento, com realidades tão distantes, restava-lhes apenas comentar sobre as séries que viam juntas ou sobre a incerteza da vida.


Já a namorada Bárbara era uma visita frequente ao barracão de Elisa. Porém, as visitas não eram tão frequentes quanto gostariam. Bárbara era formada em Letras, mas estava trabalhando em uma empresa de tratores agrícolas, presencialmente, na recepção e prospecção de clientes. Foi o único emprego que conseguiu durante a crise. Temia ser despedida a qualquer momento e o salário não era suficiente. Além disso, Bárbara sempre devia satisfações aos pais, que eram conservadores nos costumes.


Logo, com o final do mês, findavam, também, as pequenas liberdades de Elisa. Ela já tinha decidido que voltaria para a casa da mãe e do pai. Entretanto, alguma força dentro dela ainda não aceitava essa decisão. Entrou debaixo do cobertor, sentia frio do lado de fora. Febril, estava quase sufocando embrulhada nos panos, e se afundava mais ainda. Era mais prático que as lágrimas fossem absorvidas pelo tecido diretamente dos olhos do que se escorressem pelo rosto.


Ficou por tempo indeterminado mergulhada na dor e no medo, até que, involuntariamente, emergiu à superfície de si mesma e recuperou os sentidos. Percebeu que estava com calor. De repente, distinguiu um som: um gemidinho bem agudo. Por instinto, o corpo enrijeceu-se e ameaçou tirar a coberta do rosto. Hesitou. Os olhos arregalados viam apenas a estampa de bolinhas. Não conseguia mais ficar abafada, descobriu a cabeça de uma vez e olhou para todos os lados. Viu uma criatura felpuda com um rabo fino e longo guinchando na quina do barracão, onde era a cozinha. A criatura saiu num instante por debaixo da porta. Elisa pensou: “Pelo menos isso não é problema meu mais.”



Ao final da tarde no dia seguinte, após a quinta viagem na caminhonete do pai, finalmente todos os pertences de Elisa já se amontoavam junto aos entulhos do quarto dos fundos.


Depois de contemplar o trabalho de mudança finalizado, deu dois passos até o quintal e deparou-se com a terra, que se misturava ao chão de concreto enlodado, com madeiras escoradas na parede, com pneus cheios de areia, com garrafas de vidro viradas de cabeça para baixo e com o carrinho de rolimã faltando uma roda. O carrinho já estava parado exatamente ali antes de Elisa ter se mudado daquela casa. Ninguém ousaria tocar na única lembrança deixada pelo falecido irmão Elias, que tinha se suicidado.


— Tia Elisa! – um garoto choroso e com um laço rosa no cabelo abraçou as pernas de Elisa por trás. – Meu pai falou que eu tô igual bicha.


Elisa agachou-se e encarou a criatura em processo de formação.


—Seu pai não sabe de nad–


—A janta tá pronta! Eu fiz frango e angu com quiabo só porque você gosta, Elisa. Vem, se não vai esfriar! – ouviu-se a voz da mãe de Elisa.



Todos estavam na sala. Alguns conseguiram lugar na mesa: a mãe, o pai, o sobrinho e a cunhada de Elisa. Outros, no sofá: Elisa e o irmão mais velho.


—O que é aquela quebradeira no chão da cozinha? – Elisa perguntou.


—Vamos trocar o piso, tava todo quebrado e velho. Tava triste, viu! Agora, vamos colocar o porcelanato, vai ficar show. – o pai respondeu.


—Porcelanato?! Não acha melhor colocar de cerâmica? O piso de porcelanato escorrega muito. E é mais caro.


—Não, que escorrega, o quê?! Sua mãe usa chinelo na hora de lavar.


—E, também, não dura tanto. Aprendi isso no curso técnico. – Elisa complementou.

—Porcelanato é o melhor piso que tem.


—O vizinho aqui do lado terminou de construir e colocou o piso da casa inteira de porcelanato mesmo. Depois que lava o chão fica brilhante até.


—Aí, tá vendo!?


—Brilha, mas escorrega, certeza! – Elisa tentou defender seu posto.


—Isso, Elisa, é porque esse povo que dá aula fica querendo ser diferente, descobrir a boa nova. Para contar para os alunos. Mas a maioria das pessoas coloca é o piso de porcelanato, né?


—É, depois essa cerâmica quebra em menos de um ano. Aquele rapaz lá da esquina colocou cerâmica na garagem e quebrou rapidinho.


—Mas, talvez, não sei... ele deixava peso demais na garagem? – Elisa deu o último suspiro antes de abandonar a discussão.


—Não, não vamos mexer com isso, não. Cerâmica é uma fria!



Deitada no colchão antes de dormir, Elisa respondeu Bárbara no celular: “Hoje não tive coragem de contar.” Colocou-se, como na noite anterior, debaixo do cobertor de bolinhas. Todavia, não pode mergulhar em si mesma: ouviu uns ruídos que lhe chamaram a atenção. Tinha algo se mexendo nos arredores. Prestou atenção, até que distinguiu grunhidos agudos. Vários. Levantou-se rapidamente, seguiu os grunhidos até o quintal. Foi em direção aos entulhos e levantou o carrinho de rolimã. Ao ver o que se escondia ali embaixo, quis sair correndo de imediato, mas o corpo dela travou. Bolinhas de pelo vivas guinchavam e saltavam desesperadamente para todos os lados após terem sido descobertas.


Elisa permaneceu imóvel. Quis chorar. Sentiu um asco indescritível que tornaram pavorosas as feições do rosto. Um calafrio percorreu todo o corpo. Ela estava diante de um ninho de ratos.



 

Isabel nasceu em Belo Horizonte, mas cresceu em Patos de Minas, no interior. Retornou para a capital do estado com 18 anos e tornou-se Bacharela em Letras-Linguística pela UFMG. Hoje, trabalha como tradutora-intérprete dos pares Libras-Português e Inglês-Português. Nostálgica incorrigível e LGBTQIAP+, é grata por que a materialidade da vida lhe deu os mecanismos necessários para buscar refúgio na escrita em momentos de desespero. Por vezes, posta os produtos desses momentos nas redes sociais (Instagram: @coiisabel).

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