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  • Foto do escritorMargem

Família Oliveira, de Kleber Lima

Há muito tempo que me instalei na casa da família Oliveira. Numa noite, em uma das minhas caminhadas, vim parar aqui.


Não tenho muito o que dizer ou o que fazer. Estava entediado e chateado, mas principalmente cansado, cansado de uma maneira que nunca estive antes.

Meu cansaço se deixava aliciar por longas caminhadas. Apreciava o redemoinho de direções inquietando meus pés.


A cabeça não parava e foi assim que entrei, sem qualquer alarde, na casa da família Oliveira.


Lembro-me de encostar a cabeça num dos cômodos da casa e, subitamente, adormecer. Pesado sono! Bendito sono!


Desde então estou na casa da família Oliveira.


É preciso dizer: ninguém me vê. Desde que resolvi ficar aqui, não há nada que indique minha presença a não ser o pensamento de ocupar um espaço qualquer e ficar observando o que acontece.


Ocupam a casa cinco sujeitos. Na verdade, comigo seis, mas não entro na contagem. Em todo caso, a distância com a qual me mantenho de cada um não me familiariza com nada ali. .


Nesta casa há um cuspe, que me parece ser o mais velho, dois ciscos, que me parece que formam um casal de meia-idade, um grão de areia demente e um pequeno amontoado de fiapos desalinhados, ambos jovens. Não saem de casa. Permanecem enfurnados como se não houvesse nenhum mundo lá fora. Isso me chamou a atenção.


O velho cuspe mantinha a mesma posição, sempre. Esparramado. Havia certo cansaço. Às vezes ele ofegava. Ninguém ali manifestava o mínimo desejo de interferência. Logo, o cuspe retornava o movimento normal da respiração, inspirando e expirando quase imperceptivelmente, como tem que ser.


Eu ficava horas bem perto dele, de olhos fechados, mesmo que suas rugas me incomodassem se, de olhos abertos, o visse.


Ele ficava numa velha cadeira de balanço. Debaixo dela, eu. Gostava de passar as tardes ali. A ranhura do ir e vir daquela cadeira sobre o chão de madeira formava uma pequena película de pelúcia amordaçando ruídos hostis dentro de mim.


Quando saio sorrateiramente de debaixo daquela cadeira já costuma ser noite.


Sempre era mais interessante observar os ciscos à noite. Eles ficavam permanentemente no quarto. Os dois, a sós. O modo como se roçavam, um no outro, sem querer, pois bastava um vento soprado por uma janela aberta para deslocar ambos, possuía uma fragilidade que se eternizava em qualquer olhar. O choque era inevitável assim como a distância também. Quando ficavam muito tempo longe um do outro, sofriam. Ficavam silenciosamente pedindo um sopro, uma réstia de vento e se a noite passava estática era impossível não se incomodar com seus infortúnios. Desfraldados, via-lhes com os bracinhos esticados o mais que pudessem, esperando se chocarem um no outro, na esperança de um entrelace definitivo. Nunca acontecia de fato. Por alguns instantes, poderiam ter os dedos em nós, porém, logo desatados pela fustigação incerta de uma impossível brisa.


O grão de areia demente fazia anotações em seu diário. Passava dias escrevendo em seu diário. Era bonito vê-lo fora de si. Imitava perfeitamente o pouso de um pássaro. Gostava de se atirar às torneiras ligadas, dizia sempre sentir saudade do mar. Lembrava, com desespero, de uma concha decrépita cujo único encanto era guardar uma linda moça debruçada sobre o doce som do mar vitrolando dentro de si. Por algum motivo, totalmente desconhecido de mim, ele não mais podia vê-la e consumia-se escrevendo para atenuar sua dor. Colocou na cabeça que poderia possuí-la pelas palavras. Acomodava-a em longas orações que se acumulavam na parede do quarto. Desenhava um embaçado rosto. Dava-lhe uma palavra para os olhos, outra para o nariz, outra para as orelhas, as maças do rosto, a boca e o queixo. Embaralhava em um saquinho um tanto de palavras recortadas, e depois de derramar cola em boa parte da parede, atirava as palavras recortadas e deixava-as se encaixarem como melhor lhe aprouvessem. Enfim um corpo. Sentava na cama e ficava por horas olhando aquele suposto corpo recheado de palavras ambíguas. Havia tanto significado naquilo que se retorcia na tentativa de tocá-lo. Depois de certo tempo, com um cuidado acuradíssimo, recolhia cada palavra e recomeçava sua escrita da mesma forma que um músico retoma do início uma partitura executada até o fim.


Na verdade, às vezes, só quero ficar no escuro.


Do outro lado, no outro quarto, estava o pequeno amontoado de fiapos desalinhados. Lá estava ele contra a parede. Tinha uma inconteste desenvoltura acompanhada sempre por John Coltrane. A música soava baixinho, se conciliando com o silêncio. Uma pequena névoa fumegava pelo quarto. Havia um gatinho sobre a cômoda, miando em intervalos regulares, sem escândalo. Enquanto a música tocava o pequeno amontoado de fiapos desalinhados deslizava incessantemente por todas as superfícies, até quando, subitamente, estancou. Por sobre um pedaço de papel amassado, sujo de sangue fresco, pingando do alto, entrecortado pela palavra ADEUS, o pequeno amontoado de fiapos desalinhados agonizava.



 

Kleber Lima. Teresina (PI). 1984.


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