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Contexto para um poema de Marx, de Israel Isaac

No mais importante dos dias de minha vida, ordenou Deus que os muitos astros daquele céu já estrelado se curvassem sobre os ares de uma antiga capela e irradiassem ali toda espécie de luz e boa esperança. Para a vida conduzia-me o altar: mas não para qualquer vida, não para a vida do pobre e a do miserável. Essa era uma vida que importava, uma vida que valeria a pena ser vivida!


Dentro daquela igrejinha podia ver eu todo o tipo de gente com todo o tipo de terno que se pudesse imaginar no mundo. Faziam-se decorosos e com bons modos sentavam-se e esperavam pelo grande momento. As minhas mãos trêmulas denunciavam aquele sentimento outrora distante, mas descoberto em calorosas negociações pela manhã: uns chamam “paixão”, outros dizem “amor”, mas, para mim, o nome é o que de menos importa, o que vale é o sentir.


Atrasaram-se alguns convidados. Nenhum deles relevante, é claro. No mundo da indústria, as relações se fazem pelo valor que representam, não mais do que isso. De modo algum incomodava-me a ausência deles como o atraso de minha mulher: esse sim me desconcertava todo e punha a perder a elegância da produção de uns cinco ou seis criados meus que me arrumaram pelo arrastar da tarde. Eles não gostam que eu lhes chame assim, é verdade. Reclamam da condição que, nas palavras deles, é “ultrajante”. Besteira! Como é que poderia eu me lembrar do nome de tanta gente?


À minha frente estava o padre. Eu implorei para que ele recitasse algumas palavras do Criador e impusesse sobre os ânimos já exaltados daquela gente uma paz divina, e que assim os mantivesse até a chegada de minha amada, mas foi o homem que acabou empolgando-se todo. A certa altura, mesmo os pássaros que vagueavam por detrás dos vitrais podiam notar as lágrimas que escorriam dos olhos do velho enquanto ele mencionava as profecias de sei lá quem do Livro Sagrado. Não ouvi nada mesmo, e isso confesso póstuma e envergonhadamente, mas hei de dizer que concordo com tudo porque, a despeito de todas as acusações que jorram da boca dos invejosos e das vagabundas dessa cidade contra a alma de minha bondosa pessoa, não saio eu da vida jamais sob a acusação de heresia! Conclui, então, com um solene "amém", e agradeci pelo empenho do homem que agora já se exauria com a água do altar.


Ocorreu que, uns poucos minutos depois, pude sentir o tempo a distorcer-se diante de meus olhos e então os movimentos faziam-se lentos como nunca antes foram. Eu já podia ouvir o próprio Deus a vir dizer-me: "vá, meu filho, essa é a sua verdadeira riqueza!" quando cruzou o arco antigo da velha capela o amor de minha vida, segurando um enorme vestido branco com suas mãos trêmulas a fixar-me com um doce olhar que provava a cada instante a beleza que é a vida. Não precisava de mais nada: bastava

que ela fosse ela para que eu a amasse mais e mais.


Acompanhando-a veio seu pai, e o coitado fazia-se ver como um pedinte, com os pés rachados à mostra sobre um pedaço ínfimo de borracha. Todos esboçavam um certo riso de escárnio pela situação do homem e já não mais podiam escondê-lo de mim quando eu os avistava, mas não deixei que a fúria por apresentar-se o vagabundo assim, no mais especial dos dias de minha vida, me tomasse por completo, e logo tratei de focar no que mais interessava: a minha mulher. Já podia eu desfrutar das visões de um novo futuro com ela, onde o nosso amor não teria jamais um fim. E então eu a ensinaria a ler e a escrever, porque a vida dura de sua família nunca lhe permitiu tais luxos, e lhe mostraria como é ser uma boa mulher, a servir-me com as coisas de que eu gosto e a servir-se comigo também nas ocasiões apropriadas. Teríamos filhos, e seriam todos eles homens e da mais alta cultura: leriam e entenderiam os clássicos, saberiam de cor todas as leis e todos os códigos que protegem a nós, cidadãos de bem. E poderiam eles, na condição de juízes, usar cada pedaço de papel do mundo para beneficiar nosso povo, ungido de Deus, e a nos manter a salvo daqueles que estão condenados a trabalhar em nossos empreendimentos até o fim de suas miseráveis vidas, porque somos demasiado misericordiosos para deixá-los sofrer em vão. E esses meninos teriam os cuidados da mais bela das moças do mundo e veriam que o seu pai é aquele que dá nome aos reis, e não o contrário. Que tipo de coisa poderiam desejar eles que já não o tivessem antes? Pois que, certamente, seríamos uma família feliz!


E, de fato, tudo ocorreu bem no restante daquela noite mesmo, à exceção de alguns pequenos estranhamentos que tinha tratado eu de corrigir na manhã do dia seguinte, se ele a mim chegasse. Devo dizer, a título de exemplificação, que o pai vagabundo da moça chorou copiosamente por toda a cerimônia e ela própria esboçou poucos sorrisos. Mas, nesse último caso, porque me amava tanto que estava em êxtase por testemunhar a nossa eternidade. Como poderia eu, afinal, culpar-lhe àquela altura? Só se fosse um monstro! E então o padre selou a nossa união abençoada e celebramos com uma fartura de comida que não poderia existir mesmo nos sonhos daquele homem estranho de pés rachados. Havia, na verdade, fartura de tudo! De vida, de felicidade, de amor! Uma existência farta e próspera que tinha eu herdado de meu pai com as bênçãos da Fortuna, deusa romana encarregada de fazer girar o motor da história e que haveria de deixar como herança para os nossos amados futuros filhos uma riqueza de valor imensurável.


Todos empanturrados, tratei de despedir dos convidados e chamei a minha bela esposa para irmos logo à nossa casa, porque havia dado folga misericordiosa aos criados da residência e desejava, depois de uma noite plena, um pouco de privacidade para os assuntos da agora família. É claro que, se tratando daqueles inúteis, eu lhes cobraria cada segundo da vagabundagem depois, mas acontece que um proletário imbecil, com o perdão da redundância, deixou a porta de madeira das laterais de nosso lar destrancada, de tal azar que, no meu ímpeto para manter os bons modos e despedir-me dos ilustres individualmente, o pai da moça chegou primeiro na casa. Quando foi a nossa vez e eu já a agarrava desesperadamente pelos braços macios para que nos dirigíssemos ao quarto e selássemos definitivamente o nosso amor, o homem tacou para os cantos os chinelos que calejavam seus pés e atacou-me de surpresa com uma faca mal afiada de açougueiro. Até tentei me defender, mas ele desferia golpes que furavam as minhas mãos e manchavam a beldade de minha produção com ultrajantes tons de vermelho. Como imaginava ter ocorrido com Cristo, perecia agora sem motivo algum, vendido por aqueles que tentei salvar. E quando finalmente caí sobre a quina da parede, chocando-me de abrupto com o azulejo esverdeado, a faca foi tomada em posse pela minha amada, cujo nome eu nunca realmente soube, e antes de apunhalar-me no coração, instigada, certamente, pela maldade infinita de seu criador imundo, respondeu às minhas suplicas por explicação, dizendo, em voz serena:


Tomaram-me o céu clemente

E assim me vi assaltada,

Minh’alma, que em Deus fora crente,

Descobriu-se no Inferno enterrada.


E eu devo em grilhões me quedar

Atada ao homem malsão?

Pois um bom Deus não virá me salvar

Do mergulho na escravidão.


Orgulhosos, os montes reclinam

E o céu com seu ouro se ri;

Pois de olhar os homens declinam

Em seu brilho vaidoso de si.


O tempo segue brotando suas flores

Pois nada de mais se passou;

A morte engolfou com ardores

O coração que p’ra sempre calou.*





* Poema de Karl Marx, intitulado O Canto Rebelde da Noiva.


 

Israel Isaac nasceu em Itaúna, Minas Gerais, e hoje mora em Belo Horizonte. É estudante de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e apaixonado por literatura.

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