Aquilo Intolerável De Ser, de Matheus Viana
e, por um segundo, mergulhados em nossa catástrofe, todos nos olhamos nos olhos.
Marcelo Reis de Mello
A mazela de se ter uma doença completamente desconhecida e potencialmente perigosa é que a partir do momento em que você é diagnosticado, para o resto do mundo você já está…
morto
morto
morto.
A cada lufada de ar meu corpo estremece, posso sentir o suor brotar, sanguíneo, de meus poros, a morfina cumpre bem seu papel; não há dor, mas sinto-me preso dentro de uma casca anestesiada, murcha e gasta. Já não consigo me alimentar normalmente: uma sonda adentra-me goela abaixo, é por ela que me dão de comer o pouco de esperança que me resta e mesmo à contragosto, me revigora à alma quando finalmente são bem-sucedidos em colocar qualquer coisa para dentro. Se comer é improvável, falar é impossível nesse momento, meus olhos cansados não fazem mais tão bem seu papel de demostrar minhas necessidades e por muitas vezes não há ninguém para me amparar às idas ao banheiro.
É desolador se sentir só em um lugar onde há tantos como eu à minha volta, mas cada qual escolheu fazer moradia em sua própria solidão, não posso culpá-los. Imagino que eles também sintam a indiferença nos olhos das pessoas que passam pela porta, ora ou outra, sem nem se darem ao trabalho de parecerem se importar com nossas dores. Outrora fomos alguém, agora…
ninguém
ninguém
ninguém.
Essa noite, fantasio que algum de meus amantes se aproxima, sorrindo para mim, ele segura minhas mãos sem medo, em convite, e me conduz em uma dança silenciosa até que eu me dê conta das dores excruciantes do repuxar das escaras que preenchem minha pele flácida. A morfina nem sempre é capaz de sustentar meus devaneios. Noutra noite, pude jurar ouvir a voz de minha mãe, mas me recordo bem das últimas palavras que ouvi dela, como poderia esquecer…
⠀Você é um pervertido
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀sua sodomia lhe levará ao inferno
seu imoral
você não é meu filho
⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ me esqueça, eu o esquecerei.
Lembro que naquela noite fiz de um banco de praça minha cama, o frio chicoteava minha pele e o que me aquecia o rosto eram minhas lágrimas, que não cessavam. Chorei, até que a última gota rolou e caiu, decisiva, ao chão. Não restou nenhuma.
No início, realmente tinha esperança de que encontrariam a cura de nossa terrível sina, mas as macas em nosso mausoléu foram se esvaziando: me dei conta de que logo será a minha; agora meu corpo não consegue mais lutar, só precisa que a dor cesse. Estou preparado para ir rumo a qualquer inferno aos quais me mandaram a vida toda, porque nenhum deles poderá ser pior do que o que estou vivendo. No entanto, se talvez houvesse mesmo a
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Matheus Viana tem 26 anos, reside na região metropolitana de Belo Horizonte, é discente do bacharelado em Letras com especialização em Edição à UFMG e atua como estagiário em Redação. Além da escrita, Matheus também se expressa por meio do projeto de fotografia por dispositivos móveis que idealizou no Instagram, o @prismattco.