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A luz me engoliu, de Ella Martins

Eu abri os olhos. Não doía mais. Minha alma. Estava intacta. E eu podia voar. Eu via a luz de perto, mas não ousava me aproximar, queria continuar enxergando. Continuar girando no ar, dando cambalhotas, andando livremente. Não doía mais. Que sensação era esta? Esta necessidade de tomar cuidado com cada movimento meu, cada palavra minha, para onde meu olhar ia. Eu podia voar. Eu podia andar. Seria eu um anjo? Seria isto um sonho?


Nunca fui criativa. Sempre fui prática. A realidade era dura e eu tinha que colocar comida na mesa. Eu me lembrava. Minha mente estava clara. Que sensação esquisita essa de ter a mente funcionando depois de tantos anos deteriorando. Nós sustentávamos uma família de doze. Meu marido e eu. Será que veria meu marido aqui? Ele chegou muito antes de mim, não quis me esperar, nunca quis. Ele costumava dizer que eu iria sofrer depois que morresse, mas como poderia ser pior que a nossa vida? Como poderia ser pior do que acordar às três da manhã, ir para a plantação, faça chuva, faça sol. Voltar pra casa e ter que limpar, lavar, cuidar. Eu cuidei. Talvez de um jeito errado. Talvez de um jeito desigual, mas eu cuidei. Ele precisava da minha proteção. Os outros sabiam se virar.


Eu criei um monstro. Criei covardes. Criei doentes. Meu marido estava certo, nenhum deles servia pra nada. Nossas meninas sim. Nunca precisei me esforçar com elas, elas já nasceram prontas. Prontas pra sofrer. Prontas pra domar e dominar. Elas nunca precisaram da gente. Se precisaram, nunca contaram. Elas estão sempre prontas pra defender a gente. Lutar por nós. Eu deveria ter dado mais atenção a elas. Eu deveria ter exigido menos, menos limpeza, menos cuidado, menos perfeição. Tenho medo de elas serem como eu. De se tornarem eu. Mas se eles não viraram meu marido, então será que corro esse risco? Que esquisito era ver a realidade. Ver os meus erros.


Eu nasci em 1930, me casei com 13 anos. Ele tinha 16. Éramos crianças, mas crianças precisam trabalhar? Precisam carregar peso nas costas por tanto tempo? Nunca tivemos planos. O plano era não morrer. Era pagar as comidas. Tínhamos água no terreno, corria límpida, translúcida, transparente. Não tinha obstáculo como a nossa vida. Ainda agradecíamos. A gente conversava com Deus, com Nossa Senhora, nunca um com o outro. Eu sabia que ele me amava. Como? Não sei usar palavras. Ele via algo em mim. Talvez fosse a minha rebeldia. Minha boca suja. Minha pouca vontade de aguentar desaforo. Eu cuidei dele até o último dia. Depois, eu me perdi com ele, seja lá pra onde ele tenha ido.


Eu me perdi na tristeza. Minha vida virou neblina depois que ele se foi. Nosso casamento não foi como os de hoje, mas eu sabia que tinha ele comigo, isso bastava. Na nossa época, a gente não sabia o que significava falar “eu te amo”, a gente mostrava. E ele mostrou. Eu deveria ter escutado quando ele falou que eles não valiam nada. Eu deveria ter saído da frente todas as vezes que a mão dele se levantou contra ele. Mas era meu precioso, meu bebê, já tinha sofrido tanto... Ele já sabia o quanto eu ia sofrer na mão dele. Na mão do monstro que eu criei. Eu me perdi com ele, seja lá pra onde ele tenha ido.


Se meu marido estava certo e eu iria sofrer aqui, como ele poderia explicar o inferno de vida que levei depois que ele foi embora? Eu tinha a boca suja, mas ele sabia usar as palavras. Eles nunca me respeitaram. Os fracos. Os covardes. Os doentes. Só um salvou, mas não era perfeito, nenhum deles era. Mas era o menos pior. Ele se esforçava. Foi um inferno. A vida. Era só eu e meus pensamentos. Depois meus pensamentos começaram a me abandonar também. Ficamos eu e a tristeza. Essa tristeza profunda, de não ver nada além do fim, de querer o fim, de querer ficar na cama até se tornar a cama. Minhas pernas não ajudavam também. Eu precisava de apoio. Eu era pesada. Eu gostava de rapé e balas. As balas caras, daquelas com creme por dentro. Meus netos traziam pra mim, então eu via a vida de novo.


Mas eu criei doentes. O capeta morava comigo. Ele fazia a minha cabeça, ele fazia a minha tristeza e eu não sabia me livrar dele, eu não queria me livrar dele, porque ele era o meu bebê. Ele tinha sofrido tanto. Não explicava. Como se maltrata a que deu a vida? Eu dei a vida. Pra doze. Por que ele fazia isso comigo? Se ele tinha prometido pro meu marido que iria cuidar de mim. Cuidar de mim ou pegar o meu dinheiro? Cuidar é mentir? É gritar? A gente não conversava, mas eu sabia que ele me amava. Ele nunca mentiu pra mim. Ele nunca gritou comigo. Então ele foi embora e eu me perdi. Eu me perdi de novo pra tristeza.


Eu amava. Eu já tinha feito o erro, de que adiantava pensar nele agora? Eu amava. Eu faria de tudo por ele mesmo que ele me matasse aos poucos. Eu criei um monstro. Eu amava esse monstro. Ele amava uma coisa. Ele se encharcava, saía de si, pegava meu dinheiro pra essa coisa. Ele nunca mais foi o mesmo. Minha vida não fazia sentido. Eu amava o monstro. Ele amava a desgraçada. A água do capeta. A maldita. Não era culpa dele ser desse jeito, eu sabia, eu sabia que era minha culpa, só minha e ninguém poderia me dizer a verdade. A verdade me enfurecia. O que infernos eu poderia fazer com a verdade agora no inferno? Meus pensamentos me abandonaram. Ficou só a tristeza.


Agora eu podia voar. Eu estava livre do meu corpo. A tristeza ficou no meu corpo. Eu podia voar. E agora? Quando eu começaria a pagar pelos meus pecados? Eu não aprendi nada. Não aprendi a matar o monstro, mas eu estava livre. A luz se aproximava e queimava a minha pele. Eu tinha pele? A luz me engoliu. As memórias sumiram. A tristeza sumiu. Seria eu um anjo? Seria isto um sonho?


Mas anjos não sofrem...

 

Ella Martins é de BH-Minas Gerais, estagiária no setor de revisão da Editora UFMG, bacharela em Edição pela UFMG e atualmente cursa Inglês/Linguística pela mesma universidade.


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