3 poemas de Kalew Nicholas
Corte
Ajo com calma após o estrago:
observando o sangue escorrer da minha mão
primeiro analiso a faca que abriu o buraco;
vendo que permanece intacta e limpa,
a devolvo à gaveta de sacolas plásticas e, líquida,
espera-se a plaqueta, restando glóbulos vermelhos
onde distingo hemácias e hemoglobina.
Com a outra mão, toco a ferida grave.
Cicatriza rápido? Agora não, só depois que arde.
E se arde demais basta apertar bastante,
que se não deixa de ser dor
pelo menos vira arte.
–––
Eu só preciso de ar
Mãe, eu guardo de mim alguns segredos,
mas sou um arbusto infestado por vespas —
esqueço e mantenho-as, poda após poda,
mas basta um isqueiro e acendo o vespeiro:
sobrevoam ao redor da luz todas as dúvidas.
Quando irrompe o extintor, o que rondam?
Um só clique — e clec: pra onde caem?
continuam circulando livres, mas ocultas?
As vespas são feito os abutres
e querem a minha carne na vã madrugada.
Em pleno exílio, perseguem minha sombra
e resistem à chuva de areia sagrada.
Enfrentar o sol, mãe, requer coragem.
Lidar com meus erros requer irrigar no deserto
uma flor murcha, que eu juro ser miragem:
de onde veio a água? há mesmo margem?
Amar não é deserto e temor não há,
apenas flor, que me vê desperto e me dá um ar.
Conheço uma abelha e confia no pólen,
que transforma em árvore o que já foi árido.
Descubro, pouco a pouco, que ouço
— o que digo, o que vejo e o que faço —
e enquanto houver sopro, mãe,
haverá espaço.
–––
Acriançadendocarro
Pneus cantam e sobe o cheiro:
borracha queimada.
Orquestrada pelo acaso,
a sinfonia de sustos e gritos
no istmo entre a mata
instala o horror fatídico
de chamas na estrada.
Nosso carro,
invadindo uma van pelo acostamento,
sentiu menos o baque que o Astra
que vinha na direção contrária.
Minha mãe, sentada,
teve o rosto chocado
contra o banco-almofada
numa época em que airbag
era artigo de luxo. Mas,
no lusco-fusco entre curvas,
na orquestra de tais vultos,
só tive um pensamento:
— O barulho é igualzinho ao das novelas.
O desespero que se seguiu pouco teve de real:
você tá bem?, eu tô, meu Deus,
o que houve, cadê o meu—,
sai do carro, cê viu, tem uma
criança dentro do carro!,
pega meu óculos, meu Deus,
tem uma criança dentro
do carro!, uma criança den—,
na teatralidade de quem
improvisa com um script.
Como elemento conectivo
entre o realismo e o onírico,
havia apenas os mosquitos
que, bicando minha pele,
sussurravam:
— Não é como nas novelas,
mas pelo menos tu tá vivo.
E sua mãe,
íntegra fisicamente,
resiste a muito
mais que isso.
Kalew Nicholas é poeta e músico. Autor do livro-disco “walter igor” e do livro-disco “desintegração positiva”, disponíveis em versão física e nas plataformas de streaming, ambos de forma independente.
Imagem: Bernardino Mei – Ghismonda with the heart of Guiscardo (1650-1659) (Detail)