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  • Foto do escritorMargem

3 poemas da obra Copo americano, de André Piñero

ralo

os esgotos que fogem das estações de tratamento

escorrem pelas goteiras de meu conjugado

o rio tem medo de desaguar

o país está em chamas

mas as centrais de ar trabalham incansavelmente

para disfarçar o calor

alguns têm o ventilador arno e as liquidações

em todo o setor de frios do supermercado

e eu tenho a umidade das notícias

eu tenho os mesmos canais


uma música antiga diz que

o novo sempre vem

mas eu tenho certeza que isso não envelheceu

muito bem

os velhinhos nas portas de suas casas

na verdade nunca

tentaram vencer a sujeira das ruas


eu tento furar a greve de ônibus

para encontrar minha dignidade

eu tento não chorar no banco de passageiro

de um motorista de aplicativo

ele se alimenta de balas e esperança

e me oferece desculpas que não sejam tentar

o olhar impiedoso dos caixas eletrônicos

e você

a verdade nas filas de prioridade

e você

a mensagem não escrita

e você

e o país

parece que vai haver uma guerra

o hino nacional mais alto que a música pop

bandeiras mastercard

e velhinhos armados finalmente

mas não é de bom tom

combinar verde

amarelo

e sangue

e nem se esconder no trabalho

afinal meu chefe disse que as coisas

vão melhorar a partir de agora


uma grande onda invadiu a cidade

mas ninguém olhou pela janela

pra confirmar se era rio

ou goteira

e assim os bairros mais pobres

foram dizimados ou convertidos

em investimentos

enquanto trabalho


e no caminho de casa

aprendo a ignorar a previsão do tempo

porque ele nunca passa

e nunca chove por aqui

apenas inunda

e pedir a proteção do cadeado do portão

e da boca aberta no noticiário

que também tentam

descansar

no lugar do motorista


uma palavra

nada

para o país


–––


godzilla vs mothra


hoje recebo as palavras sem peso algum

algumas viverão aqui por muito tempo

depois de um dos sete mares ter escoado

e não é a visita que vai fazer eu me esconder

a inflação destrói as cidades como

um animal pré-histórico

que esteve dormindo com um olho aberto

por milênios

mas o rei dos monstros é você

tão pesada quanto a bola de futebol

das crianças pobres

um personagem de conotações capitalistas

que vai destruindo todas as casas de madeira

junto com a vontade de comer

deixando um rastro de malícia e

brinquedos de R$ 1,99

é uma agressão às minhas paredes

é só o que eu permito pela porta entreaberta

na casa que eu construí com o melhor versículo do

apocalipse

um eufemismo para destroços

uma piada empoeirada

guardada para os espaços de constrangimento

que alguns chamam de área de serviço

é menos burocrático não ter medo da lua

quando já não existe nenhum edifício

e falar com os mortos

mesmo com tua respiração embaçando meus óculos

e as linhas dos contratos

eu aceito a fumaça dos escapamentos

como os ventos problemáticos

saídos das asas de mariposas

e que transformam as crianças em pólen



–––



checklists são traiçoeiros

o e-mail antiquado

a notificação

o percurso dos dedos longe do corpo

teclados

e talvez o copo


o odor crônico da taça

a mancha


o melhor lado do colchão

a cama

porque eu queria te levar pra cama

como uma pedra

e sem nenhum tropeço

a montanha


o relevo deixado pelo espaço vazio


tu e todas

as músicas tristes da playlist

os passos distraídos entre os quartos

as gavetas incorretas

as louças reorganizadas

o ódio da cozinha

a luta de classes

o silêncio da campainha

bom dia boa tarde boa noite

o defeito


e o amor

duas ou três formas de dizer amor

antes do advento tecnológico

do corretor ortográfico

antes do acordo ortográfico

ou até mesmo antes da palavra amor

google pesquisar “amor”

é a tua cara

o risco



 

André Piñero é professor por formação, poeta por tentativa e inúmeras outras ocupações por sobrevivência. Teve um poema publicado na Coletânea de Poesias Prêmio Sesc de Literatura Carlos Drummond de Andrade, Edição 2018, do Sesc do Distrito Federal. Lançou seu primeiro livro, Copo americano, pela Editora Urutau em 2021. Até então, a única coisa mais próxima de literatura que escreveu além destes poemas foram boletins de ocorrência policial quando trabalhou em uma delegacia de periferia. Nasceu em 1987 em Belém do Pará. Atualmente reside na capital do Amazonas, Manaus.



 

Imagem: Segunda Classe (1933) – Tarsila do Amaral

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